Fábrica de coringas?
O filme coringa é uma caixa de pandora.
A casa desarrumada. O papel pisado e molhado. A cidade sem recolher seu lixo.
Este "design" entra na mente do protagonista.
Associar desarrumação externa com desarrumação interna é fenômeno descrito em outras situações.
"Mulheres que correm com lobos" cita o raciocínio contrário: arrumar a casa, arruma a mente.
Quem já passou por uma obra grande muitas vezes relata poder sentir a desorganização, a falta de estrutura, a falta de finalização, quando por tempo longo, "entrar para os ossos".
E daí?
Muita coisa vem daí.
Será que uma cidade externamente mais organizada não "organiza" com mais eficiência o interior das pessoas que nela vivem suas rotinas?
O filme Coringa retrata o oposto de uma cidade bela: retrata uma cidade típica da crise pela qual passou os EUA entre os anos 50 e 90, com incêndios, lixo, protestos, panfletos pisados na chuva e, claro, seu espelho interno humano, a violência também crescente.
A prática chamada de "vidraças quebradas" usou a teoria da cidade suja como incentivadora do crime e, usando seu antídoto mais imediato, buscou organizar a cidade nos menores detalhes. Junto com outras táticas, a paz efetivamente voltou - talvez não por coincidência com a beleza exterior - nos EUA entre 92 e 99, quando a violência voltou a descer aos patamares atuais, e as cidades voltaram a ser mais belas que mal-cuidadas, em média. Há hipóteses que dizem que isto é apenas coincidência, mas várias também há que dizem que há causa e efeito nesta relação.
Hoje, filmes como Blade Runner, Mad Max, Coringa, voltaram a ser ficção distante da realidade. Realidade que não era tão distante na época que inspirou, não por coincidência, tantas obras com finais desesperançosos.
Os produtores de Coringa souberam muito bem usar o externo e o interno como "uma bagunça só".
O filme é uma aula, em formato de cinema, sobre a influência, ou a maneira de ver, do próprio design, da maneira de se desorganizar, externa, com a mente se desajustando em sintonia com os desajustes externos. Tanto que no filme Coringa é a população como um todo, não somente o coringa, afetados pelo ódio, urgindo protestos.
A sujeira vem de fora para dentro. O lixo, a chuva molhando a roupa velha, o desamor. Entram para dentro das pessoas.
É um filme como uma grande e longa obra: para se ter estômago para acompanhar de perto.
O desejo - tanto em longas obras quanto em filmes como coringa - é de limpar tudo, arrumar tudo. "Colocar tudo em ordem".
É uma urgência que vem de nosso âmago: peça por peça, devagarinho, recolher a roupa suja. Lavar. Estender, secar. Lixar as paredes. Pintar. Desinfetar todo o piso, todos os armários. Jogar fora tudo que resta quebrado sem conserto. Limpar, tirar todo o pó. Trocar a porta. As janelas. Ser amoroso com os vizinhos. Lentamente, um a um. Colocar um fogão bem limpo para funcionar. Cozinhar um arroz com feijão e cenoura. Deixar o cheiro de família invadir, com suavidade, o prédio.
Mas e a cidade?
Se um apartamento já é enorme, e uma cidade então?
Tenho este receio sobre algumas cidades ou países: quantas cidades ou regiões ainda mais servem de cenário para um filme como coringa, do que para turistas admirados tirando foto da beleza de suas calçadas, plantas e design?
O filme me reforça uma suspeita que já era bem lógica:
Alimentamos "coringas", quando desorganizamos.
Mesmo que não cheguemos a extremos, meio coringa já pode causar grande dor.
Como podemos pintar, amar, calmamente organizar, lentamente adicionar design, em todas, em cada, região e cidade?
Estaríamos alimentando "borboletas", ao invés de "coringas", em cada passante.
Borboletas é bem clichê, quando quero me referir ao oposto de "coringas", como o coringa retratado no filme.
Dê o nome que quiser. É possível que incentivemos mentes mais organizadas, mais bonitas, mais sossegadas, de fora para dentro, se conseguirmos ter regiões mais bonitas, bem cuidadas, com pessoas mais carinhosas do que mal humoradas.
Aliás, carinho e beleza provavelmente seriam um círculo virtuoso, um alimentando o outro, de maneira cíclica.
Para deixar de teorias muito abstratas, é possível deixar uma questão puramente prática:
Como seria a cidade oposta a "Gotham City" que alimenta coringas? Em detalhes.